sábado, 22 de abril de 2017

A TRAVESSIA PELO RIO DO TEMPO (*)

Existe um questionamento que, quando feito a um escritor, dói mais que picada de serpente. A mim, particularmente, jamais fizeram. Mas fizeram a amigos meus. “Ele é do jeito mesmo que escreve?” é uma indagação brotada do amor: acharam belas as coisas que escrevi e agora estão curiosos para saber se me pareço com o que escrevo. Como afirmei, nunca me fizeram a pergunta, diretamente. Mas eu respondo. “Não, eu não sou igual ao que escrevo.” O que escrevo é melhor que eu. Invento ser outro: O eu - lírico. O texto é mais bonito que o escritor. Fernando Pessoa se espantava com isso. Ele tinha nítida consciência de que ele era muito pequeno comparado com a sua obra. Depois de escrever, leio... Por que escrevi isto? Onde fui buscar isto? De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu... Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta com que alguém escreve pra valer o que nós aqui traçamos? O que escrevo não é o que tenho; é o que me falta. Escrevo porque tenho sede e não tenho água. Sou oásis. Não. Não escrevo o que sou. Escrevo o que não sou. Sou pedra. Escrevo pássaro. Sou tristeza. Escrevo alegria. É que nós somos corpos dilacerados – o corpo é o lugar onde moram as coisas amadas que nos foram tomadas, presença de ausências, daí a saudade, que é quando o corpo não está onde está... O escritor escreve para invocar essa coisa ausente. Todo texto é um ato de alquimia do verbo cujo objetivo é tornar presente e real aquilo que está ausente e não tem realidade. O que escrevo é uma ponte de palavras aladas que tento construir para atravessar o rio do tempo. (*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista, ensaísta, biógrafo, influenciador digital, blogueiro e redator publicitário. Diretor de Redação da revista Cenário Goiano; foi Superintendente de Comunicação no Governo do Rio de Janeiro. Nove livros publicados